segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

As Dialéticas Negativas das Habilidades do Poodle #3



RHYTHM & BLUES




Zappa ouvia R&B até altas horas da noite acompanhado pelo seu colega de escola Don Van Vliet (mais tarde Captain Beefheart), singles de jukeboxes e por isso todos picados: blues eléctricos de Lightin’ Slim e Slim Harpo da editora Excello, R&B da costa Oeste de Clarence “Gatemouth” Brown, Johnny “Guitar” Watson, Chuck Higgins, Joe Huston, Don and Dewey, os blues urbanos de Chicago de Howlin’ Wolf e Muddy Waters, doowop dos Spaniels, Nutmegs, Paragons e Orchids. Esta precoce imersão em território proibido aos brancos e o surrealismo cultural do colega – o Oldsmobile azul-claro de Beefheart andava com uma cabeça de lobisomem montada no volante – permitiu a Zappa e a Beefheart apanharem, mais tarde, a onda do rock com música que era bem mais que mero rock ‘n’ roll amplificado ou blues de colegiais. A noção de um movimento de resistência genuíno – que explica o entusiasmo de Zappa pelos freaks, o desprezo pelo flower power e a sua relação ambivalente com a indústria do rock no final dos anos 70 e 80 – começou no reconhecimento da força emocional do R&B negro: a sua realidade. Embora seja excomungado pelo pós-modernismo (e a insistência de Derrida de que não existe nada para além disso), essa distinção é o equivalente cultural baixo da mesma discussão que diz que as especulações filosóficas não anulam as realidades da exploração capitalista e de classe. A recusa de qualquer idealismo exige não só uma distinção entre estalinismo e bolchevismo como entre Pat Boone e Little Richard.
Ao contrário da nostalgia animada por filmes como American Graffiti que se referem a uma experiência igual que todos “nós” devíamos ter experimentado, o entusiasmo de Zappa pelo R&B negro coloca-o em conflito com a sociedade corrente e as versões esterilizadas dessa música. Ele nem sequer gostava de Elvis.


O único disco do Elvis que gostei foi “Baby Let’s Play House”. Fiquei extraordinariamente ofendido quando gravou “Hound Dog” em 1956, porque eu tinha o disco original de Willie Mae Thornton e perguntei-me, “Como é que alguém pode fazer uma coisa destas?” Qualquer pessoa que comprasse o disco passava ao lado porque era óbvio que as pessoas nem sequer tinham ouvido falar de Willie Mae Thornton. Eles nunca passavam discos de negros nas maiores rádios.
A única maneira de ouvir aquelas coisas por que eu me apaixonava era sintonizar uma estação fanhosa que ficava a milhas de distância, ou então ir aos restos das jukeboxes, ou coisa parecida, onde se podia encontrar discos daquelas editoras – Peacock, ou Excello, coisas assim. Por isso, grande parte dos meus colegas de escola não faziam ideia, nem tinham conhecimento desse tipo de música. Aquilo que sabiam do rock era o que tinham ouvido quando alguns brancos decidiram, ah, perpetuar-se nesses discos de R&B. Quero dizer, isto já foi dito, mas é verdade – Pat Boone a cantar canções de Little Richard era um fenómeno absolutamente horroroso.

Bem, sabes, tu pões-te aí sentado a intelectualizar sobre esses discos, mas nos anos 50 eu estava na escola e eles eram reais. Quando os discos saíram eu ouvi-os e disse, “Sim, isto diz-me realmente qualquer coisa.”



Ao ouvir esses discos do anos 50 – os de Guitar Slim, Johnny “Guitar” Watson, Richard Berry, é difícil resistir à conclusão de Zappa. Claro, a “autenticidade” dos blues tornou-se mais tarde num agrilhoamento ideológico tão opressivo como os movimentos do Sinatra-júnior a partir de pop ‘n’ rolleiros como Fabian e Gene Pitney. É a habilidade de Zappa para articular estes paradoxos que torna a sua música tão especial. Contudo, as dialécticas não são um mero agnosticismo e é impossível compreender Zappa sem reconhecer a sua crítica social, o seu gosto por facto sociais e sexuais. Ele tem mesmo uma ideia da realidade material: isso explica o seu deleite pela documentação social, insistindo numa rigorosa inovação formal, a mistura de coisas triviais e abstracções que tem, efectivamente, adiado uma séria atenção crítica. O R&B deu base musical e inclinação sociológica: linhas de baixo e arranjos de metais, a sua visão de música era: o contra-ataque do vira-lata aos valores da classe média americana.


O desprezo de Zappa pela indústria rock cresceu nos anos 70 e também nasce do gosto pela criatividade diária que despontou no R&B dos anos 50. O comércio ainda não tinha chegado, atribuindo tarefas a profissionais e reduzindo os fãs a clientes passivos.

As pessoas que iam ver estes grupos gostavam mesmo deles. Não eram “espectáculos de rock” angariados por “promotores” – ao contrário, eram grupos de raparigas que alugavam a sala, contratavam o grupo, penduravam o papel crepom e vendiam os bilhetes (o primeiro concerto em que toquei – aquele em que me esqueci das baquetas – era patrocinado por um deles, as “BLUE VELVETS”).

A contribuição de Zappa como disco-joquei de R&B na estação de rádio da faculdade de Pomona (conservada por Zappa numa gravação e transmitida na rádio australiana em 1995) possuía algum do carácter “aqui têm três acordes – formem uma banda”, que os fanzines punk, como Sniffin’ Glue, tinham.



Aqui vai outra coisa que podem tocar no piano, se tiverem um à mão e estiverem cansados de tocar “Home on the Rage” dos Colors – têm de aprender dois tipos de acompanhamentos diferentes e podem tocá-los ambos em Dó que fica bem. O primeiro é assim [toca o acompanhamento de “Night Owl”], este é fácil de aprender, e aqui vai outro que também não é difícil [toca uma variação]. Bem, estes acompanhamentos, estes dois acompanhamentos funcionam com – oh, penso que são cerca de quinze mil canções diferentes de rock ‘n’ roll que podem cantar em festas.



Zappa segue depois para “Charva”, uma maravilhosa canção de amor adolescente, melancólica, onde se ouvem os versos:



Charva eu amei-te, eu sempre te amei
Amo-te desde a escola primária quando
cheirávamos cola



Será tão esquisito os Alternative TV, a banda punk liderada por Mark Perry, o editor de Sniffin Glue, terem feito uma tão autoritária versão de “Why Don’t You Do Me Right?”?: estavam ambos a falar das mesmas drogas. Provavelmente Perry soube que cheirar cola vinha dos Ramones, mas, por sua vez os Ramones tiraram a sua rotina do “gabba gabba hey” de Freaks, filme que deu nome ao culto a que Zappa aderiu (e que Zappa nomeia como seu filme favorito na resposta ao questionário da United Mutations: a principal obra de Tod Browning, banida durante trinta anos é, ainda, uma referência para a arte que resiste à normalização americana). Ainda sobre o assunto da intoxicação infantil, depois de alguns amigos terem bebido uns cálices de aguardente e desmaiado de seguida, Zappa formou uma banda chamada Black Out enquanto estava na faculdade. Zappa diz que, na altura, eram a única banda de R&B do deserto do Mojave: “três dos tipos (Johnny Franklin, Carter Franklin e Wayne Lyles) eram pretos, os irmãos Salazar eram mexicanos e o Terry Wimberley representava as outras pessoas oprimidas da terra”.
Zappa estava perfeitamente consciente das distinções sociais. Lancaster era uma cidade que crescia rapidamente devido ao emprego na Base Aérea Edwards (onde o Frank Sénior trabalhava), mas os agricultores de alfafa locais e os donos das mercearias tratavam os novos – principalmente os mexicanos do Sul e os negros do Texas – com desprezo. Em 1957, um concerto dos Black Out programado para Sun Village enfureceu as autoridades. Zappa foi preso por vadiagem, mas para frustração da polícia saiu em liberdade a tempo de participar no concerto. Houve uma enorme afluência de juventude negra e a dança do “escaravelho” de Motorhead foi um êxito. A própria banda foi protegida por eles quando um contingente racista de juventude branca os ameaçou. Sun Village foi comemorada em Roxy & Elsewhere – Johnny Franklin é citado. O “coxo” da canção era um homem famoso por dançar em frente de jukeboxes. Zappa foi convidado para ir a casa do “coxo” e ficou impressionado por encontrar um enorme e novíssimo Magnavox Stereo e no gira-discos uma cópia do Pássaro de Fogo de Stravinsky. Zappa não era o único transgressor na área.
Podemos ouvir os Black Out no Village, no primeiro Mystery Disc, a serem apresentados por uma improvisada Mestre-de-Cerimónias bêbeda. Depois ouvimos uma canção numa veia sentimental, bem-humorada, típica do R&B da costa Oeste. A cantora também era presença habitual.


Era uma mulher enorme que usava meias brancas enroladas por cima dos sapatos e cantava como um homem. Tinha voz de barítono e cantava com o grupo um blues antigo – “Steal Away” –, e, às vezes, com o Motorhead no saxofone. Ele não fazia a mínima idéia de como se tocava saxofone.


Embora o R&B parecesse “real” em comparação com a música ligeira, o R&B da costa Oeste possuía um toque de leveza. A música da costa Oeste tinha sentido de humor, enquanto que a música da costa Leste era mais deseperada. A música destes grupos chegou à Califórnia pela mão dos negros do Texas e desenvolveu a partir daí uma aura diferente.
As lendas do R&B da costa Oeste, Johnny “Guitar” Watson e Sugarcane Harris, proporcionam alguns dos melhores momentos da música de Zappa (“Andy”, “Willie the Pimp”) exactamente por causa da mistura de tristeza e frenesim estar tão próxima da música que eles exploraram. Little Richard era outro músico de Hollywood vindo do Texas, a experiência mais radical de travestismo e histeria do R&B: “Eu não queria cantar blues como um negro – queria gritar como uma mulher branca!
Esta frase contém um desafio social próprio da primeira onda de R&B. Mas também havia o sublime e sonoramente-estúpido Richard Berry, cuja rudeza revela um Dada bem refinado.
Em 1975, Zappa disse:


Sem tirar partido disso tornou muita coisa no R&B possível e se não fosse ele não apareceriam muitas pessoas. Ele era uma das mais importantes fontes obscuras do R&B da costa Oeste nos anos 50 – e agora nem tem contrato.


Quando Kevin Ayers disse que Johnny Rotten era a voz mais estimulante desde Little Richard e todas as bandas punk começaram a tocar “Louie Louie” de Richard Berry, o rock tornou a relacionar-se com a centelha que primeiro inspirou Zappa: a mente absurda e perversa do R&B. No final dos anos 70, Zappa estava demasiado ocupado com a empresa privada para fazer caso de tais continuidades e ignorou o punk como mais uma novidade. Foi Iggy Pop – outro expoente de “Louie Louie”, de uma intensidade que transcende as categorias do absurdo e sublime – que recebeu o título de “padrinho do punk”. Apesar de tudo, a atitude de Zappa tem sido sempre uma continuação da transcendental parvoíce do riff de “Louie Louie” – o coração revolucionário do rock.



Texto retirado do blog Fora de Cena que traduziu o livro de Ben Watson - The Negative Dialectics of Poodle Play. A tradução é em português de Portugal e por isso algumas palavras podem soar estranho, como o próprio título traduzido como: As Dialécticas Negativas das Habilidades do Caniche. O que no Brasil é: As Dialéticas Negativas das Habilidades do Poodle.

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